A 5 de junho de 2025, a Circle (NYSE: CRCL), a primeira empresa de stablecoins a ser cotada em bolsa, realizou a sua estreia na Bolsa de Nova Iorque a um preço de 31 dólares por ação. Bastaram 12 sessões para as ações atingirem o máximo de 299 dólares.
Em 18 de julho, fecharam nos 223,78 dólares, registando uma valorização de 622% face ao preço de estreia e elevando a capitalização da Circle para perto dos 50 mil milhões de dólares. Apesar de uma correção de 25% desde o máximo, as ações continuam a ser muito voláteis e de risco elevado.
Stablecoins são criptomoedas indexadas a moedas fiduciárias e funcionam como representações digitais do dinheiro tradicional. Em termos práticos, pode-se encarar as stablecoins como “recibos digitais de depósito” de moeda fiduciária.
Uma analogia semelhante encontra-se nas ações chinesas cotadas nos EUA, transacionadas sob a forma de American Depositary Receipts (ADRs). Por exemplo, um ADR da Alibaba equivale a uma ação ordinária, um da Baidu corresponde a oito ações, um da Trip.com a uma ação e um da JD.com a duas ações, entre outros.
Stablecoins e ADRs apresentam quatro semelhanças relevantes:
Mas há uma diferença fundamental: os ADRs são substitutos de ações e classificados como valores mobiliários, enquanto as stablecoins são substitutos de moeda e classificadas como moeda. Isto é essencial—ao abrigo da recente “Genius Act”, as stablecoins são reconhecidas especificamente como “instrumentos de pagamento”, não como valores mobiliários, mercadorias ou produtos de investimento.
A “Genius Act” foi aprovada junto da “Anti-CBDC Act”, que proíbe o governo dos EUA de emitir uma moeda digital própria—em claro contraste com o lançamento do RMB digital pela China (que é moeda soberana, e não um substituto).
Métricas Variáveis de Emissão da Circle
Fundada em 2013, em Boston, a Circle começou por se dedicar a pagamentos em bitcoin e remessas internacionais. As rondas de financiamento Series A e B captaram 26 milhões de dólares. Em 2016, a Series D foi liderada pela IDG Capital, contando com a participação da Goldman Sachs e Baidu. A China Everbright Holdings entrou na Series E, em 2018.
A grande viragem da Circle deu-se em 2018, ao lançar a USDC em parceria com a Coinbase. A USDC definiu novos padrões de transparência com reservas em dólares garantidas a 1:1 e relatórios de auditoria mensais, criando concorrência diferenciada para a USDT.
De 1 de janeiro de 2021 a 31 de março de 2025, a USDC registou 558 mil milhões em emissões brutas e 502 mil milhões em resgates, totalizando mais de 1 bilião de dólares em fluxos agregados.
Em junho de 2025, a USDC tinha cerca de 61 mil milhões em circulação com uma quota de 25%, ocupando o segundo lugar do mercado. A USDT da Tether liderava com aproximadamente 150 mil milhões e 62% de quota.
Embora a maioria na China o desconheça, o volume de transações em stablecoins cresceu de forma avassaladora:
Em 2024, as stablecoins movimentaram 15,6 biliões de dólares em transações—a superar Visa e Mastercard.
No prospeto do IPO da Circle, só no primeiro trimestre de 2025 o volume total de transações atingiu 6 biliões de dólares. Desde o lançamento, a USDC perfaz 25 biliões em volume acumulado.
Em julho de 2025, a média diária de volume negociado das últimas 24 horas para USDC e USDT foi de 60 e 120 mil milhões de dólares, respetivamente. O volume anualizado de transações destes dois líderes supera 70 biliões!
Para referência, o valor total transacionado com cartões bancários na China em 2024 foi de RMB 992,5 biliões, incluindo RMB 791,7 biliões em transferências, RMB 133,7 biliões em compras e RMB 67,1 biliões em levantamentos e depósitos.
O comércio em stablecoins explodiu nos últimos dois anos e já representa cerca de metade do volume total das transações com cartões bancários na China.
O “Aluno Modelo”
Apesar de operar a metade da escala da Tether, a Circle foi pioneira a aceder aos mercados bolsistas e a captar forte entusiasmo dos investidores. A razão: o seu compromisso com a conformidade e alinhamento regulatório—tornando-se o “aluno modelo”.
A postura de “aluno modelo” da Circle destaca-se em dois domínios:
Já a Tether opera offshore, com sede em El Salvador. Além disso, mais de 60% das reservas da Tether são papel comercial—o que levanta sérias dúvidas em comparação com a segurança da Circle.
A USDC da Circle cumpre os requisitos regulatórios, enquanto a USDT da Tether não—embora a opção não conforme continue a dominar o mercado.
Com a nova “Genius Act”, os EUA exigem um lastro integral em numerário e Treasuries para stablecoins, beneficiando diretamente a USDC e pondo em risco a USDT, que pode ser excluída das bolsas americanas. Contudo, em muitos mercados emergentes, a ausência de requisitos regulatórios faz, paradoxalmente, aumentar a atratividade da USDT.
A Coinbase, criada em maio de 2012, evoluiu de bolsa para um ecossistema abrangente de criptoativos, com receitas de 3,99 mil milhões de dólares em 2024.
A Coinbase também é considerada “aluno modelo”, com licença MSB dos EUA, registos FinCEN e CFTC, registo SEC como consultora de investimentos em criptoativos, além de estatuto MiCA europeu.
Utiliza modelos de previsão regulatória e intervém ativamente na definição de políticas—como o GENIUS Stablecoin Act.
Mas esta aposta na conformidade conduz a comissões elevadas e uma oferta restrita de tokens.
A Circle e Coinbase são um “par natural”. Em 2018 fundaram o Centre Consortium, com propriedade dividida 50/50. A Circle geria o desenvolvimento tecnológico e reservas; a Coinbase assegurava a distribuição.
Em agosto de 2023, a Circle adquiriu toda a participação do Centre Consortium (por 210 milhões em ações da Circle, equivalentes a 4% do capital).
Apesar disso, as empresas mantêm-se profundamente interligadas, mas o acordo de colaboração é consideravelmente “desequilibrado”:
Com rendimentos atrativos e proteções sólidas, a quota da Coinbase nas reservas USDC cresceu dos 5% em 2024 para 20%, e depois para 23% no 1.º trimestre de 2025.
Sem plataforma própria de distribuição e negociação, a Circle continua dependente de parceiros como a Coinbase.
Mais de 90% da receita da Circle provém dos rendimentos dos ativos de reserva, essencialmente Treasuries norte-americanos de curto prazo.
O saldo em circulação de USDC equivale praticamente aos ativos remunerados da Circle, servindo de base para o cálculo dos rendimentos das reservas.
Com os cortes das taxas da Fed já em marcha, o cenário complica-se ainda mais: a Coinbase apropria-se de uma fatia cada vez maior dos rendimentos.
Em 2022, os custos de distribuição/negociação da Circle foram de 290 milhões, absorvendo 39% dos rendimentos.
Dizem que a Coinbase quer aumentar a sua quota nos rendimentos dos ativos de 50% para 70%.
A Coinbase tornou-se um garrote crescente para a Circle. Se antes queria apenas uma parte, agora põe em risco a sobrevivência da Circle.
A inovação financeira digital confronta inevitavelmente os interesses instalados da banca tradicional—a nível global.
A Circle ambiciona a “troca de valor sem atrito”, concorrendo diretamente com as elevadas comissões da SWIFT.
A SWIFT (Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication) liga mais de 11.000 instituições financeiras em mais de 200 países para pagamentos transfronteiriços. Segundo o Banco Mundial, os custos médios da SWIFT são de 6,01% do valor remitido, um verdadeiro “custo de atrito”.
A tecnologia da SWIFT, dos anos 70, está obsoleta, dependente de documentos em papel e processos manuais, pelo que as liquidações podem demorar entre dois e cinco dias.
As stablecoins ameaçam o modelo da SWIFT, permitindo transferências transfronteiriças instantâneas e económicas, tornando-se alvos dos incumbentes.
Além disso, a SWIFT—dominada pelo Ocidente—é instrumento de poder financeiro internacional. Após o início do conflito Rússia-Ucrânia, os EUA impuseram milhares de sanções, sendo a exclusão da Rússia da SWIFT a mais eficaz, apelidada de “bomba nuclear financeira”. Essa decisão serviu, também, de aviso à China.
Como as stablecoins podem contornar a SWIFT, não surpreende que o governo americano veja estas com desconfiança.
Os EUA alteraram a sua postura em relação às stablecoins com um objetivo: criar procura adicional por Treasuries americanos. Trata-se de uma estratégia deliberada e quase impossível de contrariar.
Opera em dois níveis:
Assim, os detentores de dólares transformam-se, subtilmente, em detentores de Treasuries. O analista Besant prevê que, até 2030, a emissão de stablecoins atinja 3,7 biliões de dólares—todo esse montante terá de ser lastreado por numerário ou Treasuries.
Alguns defendem que as stablecoins só aumentam a procura por dívida de curto prazo, fácil de colocar—enquanto o verdadeiro problema permanece nos títulos de maior maturidade.
Na prática, porém, os Treasuries só têm procura se as yields forem competitivas:
Obviamente, empresas como a Evergrande preferem emitir obrigações a 10 anos, mas aceitam as de 3 meses. Quando falta liquidez, qualquer maturidade serve. No caso de Trump, o importante é vender o máximo de obrigações—o problema de maturidade fica para quem vier a seguir. Pressiona a Fed para baixar taxas, mas esta pondera se taxas mais baixas dificultam a venda de dívida, obrigando à intervenção do Fed.
Há quem argumente: se detentores de Treasuries trocarem dívida por stablecoins, não há procura nova. Mas abdicar de juros para obter liquidez (e passar o rendimento ao emissor de stablecoins) levanta uma questão: qual o incentivo?
O chamado “Plano Mar-a-Lago” procurou forçar detentores estrangeiros de Treasuries—a recorrendo a tarifas e outras táticas—a adquirir “obrigações do século”, a 100 anos sem cupão. Mesmo o Japão, o alvo mais óbvio, recusou, e o plano fracassou.
O plano vigente nos EUA—apodado de “Plano Pennsylvania Avenue”, aludindo à morada do Tesouro e arquitetado por Besant—utiliza as stablecoins para responder ao desafio da dívida americana. Mas os verdadeiros candidatos são as gigantes tecnológicas, como Apple ou Amazon (“AppleUSD”, “AmazonCoin”), não a Circle e, muito menos, a Tether.
Pelas suas marcas globais e apoio explícito dos Treasuries americanos, as big tech têm potencial para dominar o mercado de stablecoins—um golpe para a Circle, mas com pouco impacto na menos escrupulosa Tether.
É igualmente previsível que, sob pressão política, empresas como a Apple usem parte das suas reservas em numerário para apoiar stablecoins próprias.
Em resumo, as grandes ameaças à Circle são: cortes nas taxas de juro, entrada das big tech e pressão da Coinbase.